Privacidade e Criptomoedas: Um Equilíbrio Necessário

Privacidade e Criptomoedas: Um Equilíbrio Necessário

Vivemos uma era em que a promessa das criptomoedas desafia velhas estruturas de poder e redefine conceitos de proteção financeira. No entanto, equilibrar privacidade e compliance tornou-se um dos debates centrais do setor.

Introdução – O que está em jogo?

Desde o surgimento do Bitcoin em 2009, as criptomoedas carregam o ideal de autonomia individual e privacidade financeira. A tecnologia blockchain nasceu para oferecer transparência radical, mas muitos acreditam que todas as transações são totalmente anônimas, o que não corresponde à realidade técnica da maioria dos criptoativos.

Embora endereços sejam representados por chaves criptografadas, a visibilidade pública das transações cria um registro imutável, permitindo que qualquer pessoa rastreie fluxos de valores em blockchains como Bitcoin e Ethereum.

Bases técnicas: anonimato, pseudonimato e privacidade

Antes de avançar no tema regulatório, é fundamental diferenciar três conceitos frequentemente confundidos:

  • Anonimato: sem ligação alguma entre transação e pessoa real.
  • Pseudonimato: uso de endereços criptografados sem identificação direta.
  • Privacidade: proteção de dados e de identidade durante e após a transação.

Na prática, a maior parte dos blockchains públicos funciona em base pseudônima, pois as transações são visíveis, mas não associadas a nomes reais sem a intervenção de terceiros.

As exchanges, por sua vez, exigem identificação segundo regras KYC/AML, ligando dados pessoais a movimentações financeiras em cumprimento a normas nacionais e internacionais.

Avanço da regulação global e nacional

O Brasil está prestes a implementar a resolução BCB 519/520/521 e a Instrução Normativa 2.291/2025 da Receita Federal, criando novos requisitos para o setor de criptoativos. Essas normas entram em vigor em fevereiro de 2026.

  • Banco Central do Brasil (BCB): exige governança, segurança, segregação patrimonial e autorização prévia para operar.
  • Receita Federal (DeCripto): obriga exchanges estrangeiras a reportar transações de usuários brasileiros.
  • Padrões internacionais: alinham-se a GAFI/FATF, OCDE, G20 e ao Crypto-Asset Reporting Framework (CARF).

As regras determinam que as exchanges identifiquem usuários de carteiras de autocustódia ao transferir ativos, incluindo nome, tipo de ativo, valor e data. Além disso, o Fisco pode solicitar dados de endereços não reportados espontaneamente.

O objetivo central é combater lavagem de dinheiro e evasão fiscal, além de prevenir fraudes e financiamento ao terrorismo.

Debate: privacidade, inovação e compliance

As autoridades defendem que essas medidas são essenciais para proteção de investidores e segurança do mercado. Regulamentações claras trazem previsibilidade para empresas e asseguram conformidade com padrões globais.

Por outro lado, muitos entusiastas veem a exigência de identificação em carteiras autocustodiadas como um ataque aos pilares dos criptoativos e inovação. Alegam que tal controle excessivo ameaça a privacidade individual e pode resultar em vazamentos de dados sensíveis.

Na União Europeia, o regulamento MiCA e nos Estados Unidos, discussões sobre rastreabilidade versus anonimato continuam sem consenso, refletindo a complexidade de encontrar o modelo ideal.

O mercado das criptomoedas de privacidade

Apesar de críticas e barreiras regulatórias, criptomoedas voltadas à privacidade ganharam força em 2025. Enquanto Bitcoin valorizou 27,1% e Ethereum 33,4%, o nicho de privacidade alcançou impressionantes 71,6%.

Esses números revelam oportunidades de nicho, mas também desafios de aceitação e regulamentação, pois ativos de privacidade atraem maior escrutínio das autoridades e menor cobertura midiática.

Consentimento informado e proteção de dados sensíveis

Projetos como o Worldcoin, que coletam dados biométricos para distribuir tokens, levantam debates sobre consentimento livre e informado. Segundo a LGPD, qualquer tratamento de dados pessoais, incluindo biometria, requer consentimento inequívoco.

Há preocupações sobre a vulnerabilidade de usuários desinformados e sobre o risco de que dados sensíveis sejam armazenados ou usados de maneira indevida.

Novas técnicas para reconciliar privacidade e compliance

Em resposta às demandas de proteção e transparência, tecnologias como provas de conhecimento zero (ZKPs) oferecem uma solução promissora. ZKPs permitem verificar a veracidade de informações sem revelar dados subjacentes.

Assim, exchanges e auditores podem confirmar conformidade sem expor saldos ou identidades, criando um ambiente de auditoria segura e confiável para todas as partes.

Conclusão – Caminhos possíveis

O grande dilema ético-regulatório reside em criar um arcabouço que incentive inovação, proteja direitos individuais e, ao mesmo tempo, garanta a integridade do sistema financeiro.

É fundamental que legisladores, setor privado e sociedade civil mantenham um diálogo contínuo. Somente assim evitaremos excessos de um lado — vigilância desmedida — ou do outro — facilitação de ilícitos.

O futuro das criptomoedas dependerá da nossa capacidade de encontrar equilíbrio entre regulação e autonomia, preservando a liberdade financeira sem abrir mão da segurança coletiva.

Por Maryella Faratro

Maryella Faratro